Aos 80 anos, o diretor Domingos Oliveira dribla as artimanhas do Parkinson – doença com a qual convive desde 2002 – para manter-se imerso em seu mar de criação
Domingos Oliveira (Foto: Domingos Oliveira) |
Você fez 80 anos recentemente. É verdade que sua festa durou três dias?
Eu adoro dançar, mas minhas pernas não estão na melhor forma. Mesmo assim quis dançar uma música de cada ano que vivi. Comecei a montar a lista com sucessos, o que acabou se tornando interessantíssimo. Depois notei que uma música por ano era pouco. Passei para duas, quem sabe três. Deu nove horas. Para dançar tudo, só dividindo em três dias. Foi o que fiz. Sou bom de festa.
Esse aniversário gerou reflexões diferentes dos outros?
Oitenta está mais pesado. Eu mesmo ouço a palavra e fico preocupado. É muita idade. Me pergunto: “Como cheguei aqui, foi tão rápido?” A vida não é rápida, é rapidíssima.
Em BR 716, Felipe (Caio Blat) diz: “Não é a gente que passa pelo tempo, é o tempo que passa pela gente”. É sua sensação também?
Dentro de mim, meu sentimento é o de ser um jovem cineasta. Tenho uns 35 anos. A cabeça melhora com o tempo. Nunca estive tão inteligente e sagaz, mas o corpo vai para o beleléu. E não dá para comprar outro...
Como lida com isso?
Não lido, fico triste. Uso minha filosofia para achar que isso é da vida. Não acredito na vida eterna, embora não a negue... Seria uma burrice negar. Mas a filosofia vale mais que qualquer outra reflexão. Acho que foi Platão quem escreveu: “Se não houver nada depois dessa vida, a morte será um merecido descanso”. Isso é tão interessante.
Qual sua relação com religião?
Sou místico, tenho noção muito clara do mistério da vida. Acredito em Deus como elemento poético. É a ideia mais inspiradora que o homem teve. Conheço Deus, mas Ele não sabe de mim. Qualquer coisa que aconteça comigo, a responsabilidade é minha. Não passo a culpa para ninguém. Também não tenho vontade de ter guru ou santo. Ninguém pode ajudar realmente nesse campo existencial. Na vida, claro, precisamos da ajuda dos amigos e da família. Isso se chama amor.
Aos 75 anos, você disse pensar em sexo o tempo todo. Como é aos 80?
Nunca pensei em sexo o tempo inteiro. Aliás, me levantava das camas mais deliciosas e dizia: “Meu amor, me dá licença que preciso trabalhar”. Mas o sexo está no fundo de cada sentimento. Ainda vão descobrir que as forças que unem os átomos são de ordem sexual.
Sua relação com as mulheres mudou muito ao longo dos anos?
É exatamente da mesma forma, com muito encantamento e respeito pela inteligência feminina. As mulheres são mais inteligentes que os homens e não digo isso para agradá-las. Prefiro uma roda de mulheres, gosto do jeito de pensar delas.
A doença de Parkinson interfere na sua criação?
O Parkinson não mata, mas sacaneia. Dá sensação de cansaço, como se estivesse gripado o dia inteiro. Às vezes me sinto exausto e trabalho menos. Mas normalmente trabalho seis horas por dia. Tenho três secretárias que me ajudam. Dito tudo para elas. Demorei a me acostumar, mas estou fazendo isso cada vez melhor. Trabalho em busca da beleza e da poesia, coisas que engrandeçam a alma. Platão dizia que a melhor coisa da vida é saber que você tem uma alma. A segunda, que você pode melhorá-la.
A maioria de seus filmes traz muitas referências da sua vida. Ela é mesmo sua principal fonte de inspiração?
Sem dúvida. As histórias imaginadas são muito fajutas. Aquilo que não é baseado numa vivência minha, em alguém que conheci ou imaginei conhecer, parece não ter sustentação. Meus filmes são todos iguais e não são, porque as pessoas são diferentes. Essa é a riqueza da vida.
“Me arrependo de tudo que fiz. Se pudesse faria tudo de novo, mas muito melhor
Revisitar suas histórias o ajudou a se entender?
À medida que o escritor vai se desenvolvendo, o objetivo dele muda: atinge
a memória e depois ultrapassa a memória. Ele cria um curto-circuito entre ele e a consciência. Quero escrever sobre coisas que não entendo. O inconsciente ensina coisas muito mais ricas que o raciocínio. Tem acontecido cada vez mais comigo, sou consumido pelos personagens. Planejo tudo direitinho, mas na hora de filmar não é nada daquilo.
Conseguiu escrever e dirigir tudo que quis?
Fiz o que pude. Tenho dez roteiros de longas, duas séries para televisão prontas. Queria mesmo desenvolver um aplicativo que pudesse traduzir as minhas ideias. Penso sempre coisas geniais, mas não consigo colocá-las no papel porque as esqueço. Tenho vontade de escrever um livro póstumo com tudo que tenho guardado.
Pensa na morte?
A vida é um dom irresistível, estupidamente belo, e que você não pediu, mas te dão de presente. De repente, você está na melhor fase, e ela tira isso de você. A natureza é safada. Morrer é triste. Quem diz que não liga ou não tem medo de morrer está mentindo. A vida é boa demais. Queria ficar aqui mais 500 anos. Não sei quanto tempo tenho, mas vai dar trabalho me tirar daqui.
Você se arrepende de alguma coisa?
Me arrependo de tudo que fiz. Se pudesse, faria tudo de novo, as mesmas coisas, mas muito melhor.
Considera-se um homem feminino?
Gosto de me imaginar assim. Se me dizem isso, fico contente. Gay eu nunca consegui ser. Não tenho vocação. Fonte: Revista Quem. Veja mais aqui: 24/03/2019 - Corpo de Domingos Oliveira é velado no Teatro Maria Clara Machado, na Zona Sul do Rio
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