3 de abril de 2015

O novo “Tapa na Pantera” de Maria Alice Vergueiro

Aos 80 anos, a polêmica e talentosa atriz desafia a doença de Parkinson e ensaia o próprio velório na peça Why the Horse?
02/04/2015 - Um exemplar da Bíblia Sagrada aberto repousa, entre uma estátua de Santo Antônio e um candelabro, sobre um balcão no confortável apartamento de Higienópolis. Os pesados móveis de madeira e os sofás discretos sugerem que ali, em frente ao Parque Buenos Aires, vive uma mulher de 80 anos, refinada e de cabelos brancos, bem ao estilo de tantas outras senhoras do bairro. Em meio aos elementos clássicos da decoração, a imagem do guerrilheiro argentino Ernesto Che Guevara e um quadro do dramaturgo irlandês Samuel Beckett saltam aos olhos e oferecem pistas destoantes em relação ao perfil da anfitriã.

De raízes aristocráticas, Maria Alice Monteiro de Campos Vergueiro, a dona do imóvel, aprendeu três idiomas até a adolescência, casou-se aos 22 anos com um advogado, teve dois filhos e, separada meia década depois, começou a se desviar da rota — para nunca mais parar. Nessa caminhada menos convencional, entrou fundo na trilogia sexo, drogas e teatro. Com atuações surpreendentes, virou a primeira-dama do teatro alternativo da capital, lutou contra o alcoolismo, esnobou convites para novelas da Rede Globo e conheceu o sucesso popular na internet com o vídeo Tapa na Pantera, em 2006, encarnando de forma impagável uma velha consumidora de Cannabis.

Aos 80 anos, ela ainda foge ao máximo das obviedades. Muitas vezes, paga uma fatura alta por suas ousadias, mas as enfrenta de cabeça erguida. “Nem sempre foi assim”, confessa. “Eu já baixei a guarda para muita gente.” Desde o fim de 2000, Maria Alice convive com a doença de Parkinson e se esforça para que a interferência do diagnóstico na sua profissão seja a menor possível. “Minha fala já foi afetada, e nem sempre encontro aquela palavra na ponta da língua, mas trouxe o problema de saúde para meus personagens e não deixo de atuar”, afirma, com a voz embargada e uma lucidez espantosa. A artista passa o tempo inteiro em uma cadeira de rodas por causa de uma artrose e uma cirurgia malsucedida para a colocação de próteses nos joelhos. Na peça As Três Velhas, apresentada entre 2010 e 2013, desfilava pelo palco desenvolta sobre sua cadeira, cantava e mostrava os seios. “Quando você aceita uma limitação, tudo fica ilimitado”, justifica.

Com estreia prometida para sexta (10), no Teatro do Sesc Santana, o espetáculo Why the Horse? é sua nova provocação. “Uso o marketing da minha morte como forma de inaugurar uma nova vida”, afirma. Ela simula o próprio velório na encenação de referências autobiográficas. A dramaturgia, assinada por Fábio Furtado, é centrada na moribunda Maria, uma veterana artista que se despede de sua história.

Um ator maduro (interpretado por Luciano Chirolli), com quem estabeleceu uma relação de cumplicidade, e um jovem casal (representado por Carolina Splendore e Robson Catalunha) também estão por perto, para velar o corpo e segurar as alças do caixão. “Quero fazer desse espetáculo um acontecimento, e não algo tétrico”, diz a estrela. “Eu estou indo embora mesmo, não adianta ficar triste, então surgirei feliz no palco, expondo limitações da minha vida, e quero o público dando risadas na saída do teatro.” Para Luciano Chirolli, a alegoria não deixa de machucar um pouco. “Começo todos os ensaios com enorme vontade de chorar.” A estrela rebate: “Podem ficar tranquilos porque eu não tenho medo da morte. Dizem que ela vem acompanhada de solidão, e estou no lado oposto, sempre rodeada por amigos que cuidam de mim e me incentivam a criar”.

Foi de Chirolli a ideia da montagem, logo depois de uma internação de Maria Alice em decorrência de uma infecção hospitalar contraída em uma cirurgia no ano passado. “Nessa época, eu vivi um luto e senti que necessitava de uma preparação para o dia em que ela faltasse.” Parceiros artísticos há duas décadas, Chirolli passou a viver no apartamento de Maria Alice desde que a mãe da atriz, Maria Antônia, morreu, aos 98 anos, em 2010. A intimidade é tanta que os dois dormem todas as noites com a porta do respectivo quarto aberta. “Se precisar de qualquer coisa urgente na madrugada, estou lá pronto para ajudá-la”, conta ele, que conduz a amiga tanto para as visitas aos médicos como para as estreias teatrais que não deixa de prestigiar.

Fruto do único casamento convencional, em 1957, os dois filhos da artista, a musicista Maria Silvia, de 57 anos, e o empresário Roberto, de 53, deram-lhe quatro netos e permanecem leais em meio aos compromissos de suas agendas. Profundo admirador da mãe, o caçula reconhece que, apesar de eventuais ausências durante temporadas passadas por ela em Lisboa e Paris na década de 70, a relação entre ambos não foi estremecida e, hoje, vivem um resgate do afeto. “Minha mãe não seria essa pessoa tão verdadeira e corajosa, inclusive pela capacidade de enfrentar a saúde frágil, se não tivesse experimentado toda essa bagagem de vida”, afirma. “Logo depois dessa peça, quero vê-la de pé novamente. Vamos marcar uma cirurgia para trocar as próteses dos joelhos.”

Maria Alice guarda lá no fundo uma dose de culpa e considera que, em meio ao desbunde do passado, negligenciou os mais próximos. “Percebo que só agora, na velhice, tenho capacidade de amar e compreender meus filhos”, confessa ela, entusiasmada com a perspectiva do casamento da neta Maria Isabel nos próximos meses. Com a mãe, a relação de embate permanente durou quase até o fim. Crítica às opções pessoais e profissionais da filha, Maria Antônia, porém, nunca deixou de entregar a ela por quatro décadas boa parte da generosa pensão deixada pelo marido, um promotor público, morto em 1956. “Sempre fui bancada pela minha mãe e, por causa disso, construí uma carreira sem preocupações.”

A atriz não se arrepende de ter sido guiada pelo impulso em nome da arte. E não foram poucos. Como professora da Escola de Aplicação da USP nos anos 60, levava os alunos, menores de idade, às montagens do Teatro de Arena e do Teatro Oficina, todas proibidas a quem tivesse menos de 18 anos. Um deles era o futuro diretor Cacá Rosset, que reencontraria a mestre na Escola de Comunicações e Artes (ECA), também da USP, e protagonizaria ao seu lado uma das mais pesadas celeumas que envolveram Maria Alice. No ápice da peça estudantil O Cabaré da Rainha Louca, o cafetão vivido pelo aluno Rosset sodomizava a prostituta representada pela professora.

Uma sindicância instaurada na universidade gerou um arrastado processo e exonerou a professora do cargo sem que ela recebesse os direitos acumulados por tempo de serviço. “Se até então Maria viveu com um pé em cada canoa, sem se decidir se era pedagoga ou atriz, ali ela foi forçada a assumir o palco”, conta Rosset. Ao lado da antiga mestre e de Luiz Roberto Galízia (1952- 1985), Cacá fundaria, em 1977, o grupo Teatro do Ornitorrinco, ícone da irreverência e do escracho em cena paulistana na década seguinte.

Reconhecida pela crítica e admirada no meio teatral — estatuetas dos prêmios Molière, APCA e Shell, entre outras, também decoram um espaço da casa —, a estrela dosou técnica com irreverência nos tablados. Em 1984, polemizou em São Paulo e Nova York ao dividir a cena com a atriz Magali Biff na performance A Pororoca, de teor feminista e sensual. Guiada pelo encenador Gerald Thomas, colheu elogios unânimes por sua composição em Electra com Creta. Em outra tragédia, Medea, chocava a plateia ao urinar diante de todos e, em 2002, já diagnosticada com Parkinson, realizou o sonho de montar Mãe Coragem e Seus Filhos, de Bertolt Brecht. Fora dos palcos, a única investida na Rede Globo foi com a novela Sassaricando (1987). “Eu me arrependo de ter recusado tantos convites da TV”, confessa. “Hoje, estaria mais amparada financeiramente.”
Maria Alice Vergueiro

Na vida pessoal, o álcool foi um fantasma por quase trinta anos. Na temporada carioca do musical Ópera do Malandro, criado por Chico Buarque em 1978, ela bebia nos intervalos das sessões e criou indisposições inclusive com o autor e com Marieta Severo, uma das protagonistas. “Estava sem controle algum”, conta, baixando os olhos. “Por trás dessa mulher tão desafiadora, sempre fui domada pela insegurança, recorria a blefes e não vivia sem um copo ao meu alcance.” Quando a barra pesou de vez, em meados da década de 80, pediu água aos Alcoólicos Anônimos e, até poucos anos atrás, aparecia em uma ou outra reunião do grupo. “Às vezes, até me atrevo a dar um gole no uísque de algum amigo e não entendo por que gostava tanto daquilo”, garante.

A popularidade na carreira chegou de forma inesperada. Em 2006, um bem humorado vídeo batizado de Tapa na Pantera bombou no YouTube. Protagonizado por Maria Alice, o filme mostra uma mulher que consome maconha há trinta anos e não se considera dependente. O tênue limite entre ficção e realidade gerou dúvidas entre os mais de 5 milhões de internautas que acessaram a história apenas no primeiro ano. Hoje, o número superou a marca de 6 milhões. “Não passo por consulta médica sem responder se fumo ou não maconha”, diverte-se Maria Alice. Mas, afinal, ela ainda dá um tapa na pantera? “Fumo há trinta anos todos os dias e não pulo nenhum”, desconversa, incorporando a fala do roteiro para esfumaçar a fronteira entre o real e o imaginário na pele de mais uma de suas personagens.

Quando a dor vira arte
O desafio de enfrentar dramas pessoais em cena é um recurso recorrente para inspirar atores e diretores. Fonte: Veja SP.

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