'Ali: A Life' retrata boxeador que se opôs ao governo e defendeu causas raciais, religiosas e sociais
04 Novembro 2017 | Ele dizia que era o maior de todos os tempos, e tinha razão. Poucos atletas conseguem chegar ao ápice do esporte. Dentre os que conseguem, dois ou três alcançam o topo com uma ginga que fazem deles também a principal atração de sua modalidade. Só um abriu mão de tudo isso para tomar uma atitude malvista, mas íntegra.Quando morreu, em 3 de junho do ano passado, Muhammad Ali foi lembrado não apenas como o mais galardoado e fascinante peso pesado do boxe, mas também por ter se recusado a servir na Guerra do Vietnã, em protesto contra a supremacia branca. Atualmente, atletas negros protestam em uníssono contra o governo americano. Ali fez isso sozinho. Por ocasião de seu falecimento, Barack Obama, que tinha na Casa Branca um par de luvas usado pelo boxeador, o comparou a Martin Luther King e Nelson Mandela.
Lançada em outubro, Ali: A Life, de Jonathan Eig, é a primeira biografia de peso a ser publicada desde a morte de Ali. Trata-se de uma narrativa contundente: muitos mitos envolvendo o boxeador são postos a nocaute. Quando tinha 12 anos, Cassius Clay realmente começou a praticar boxe para se desforrar do roubo de sua bicicleta — mas seus pais também lhe compraram um patinete para que ele não ficasse totalmente a pé. No início da carreira, ele gostava de seu nome de batismo, que parecia coisa de gladiador. Campeão olímpico, ainda exibia orgulhosamente sua medalha anos depois de tê-la conquistado (e não a atirou no rio Ohio com raiva dos restaurantes que proibiam a entrada de negros, como o próprio Ali diz na autobiografia que publicou em 1975). Embora vivesse se gabando de sua valentia, Ali tinha medo de avião, ficava extremamente tímido perto das moças quando jovem — chegou a desmaiar depois de tentar beijar uma garota — e sucumbia ao nervosismo antes de suas lutas. Apesar de todas as suas tiradas espirituosas e suas rimas, os colegas de escola o consideravam “burro como uma porta” e Ali era praticamente analfabeto.
Eig apresenta o retrato de um homem que dizia fazer “tudo por instinto”, dentro e fora do ringue. Seus impulsos se digladiavam uns com os outros. Ali tinha sede de fama, mas não fazia questão de que gostassem dele. Deixava os americanos brancos espumando de raiva e chamava seus adversários negros de “Uncle Tom” (epíteto aplicado a negros subservientes aos brancos). Queria a todo custo ser conhecido, e era por isso que, na adolescência, ia de porta em porta anunciando suas lutas e, para treinar, corria ao lado do ônibus escolar. Também adorava ganhar dinheiro. Em 1974, aceitou US$ 5 milhões do ditador do Zaire, Mobutu Sese Seko, para enfrentar num combate televisionado — realizado em Kinshasa e anunciado como “luta na selva” — o então invicto campeão dos pesos pesados, George Foreman. E era viciado em sexo. Casado quatro vezes, Ali gostava de jogar as ex-mulheres umas contra as outras, pedindo-lhes que fizessem reservas em hotéis para suas puladas de cerca. Muitas vezes era apanhado com prostitutas em dias de luta.
Por outro lado, tinha a generosidade de sua mãe, fazendo visitas frequentes a hospitais e escolas e oferecendo ajuda a todos que o procuravam em busca de caridade. Infelizmente, a prodigalidade se misturava com o senso de lealdade. Sua fortuna foi dilapidada por um bando de bajuladores. E para isso também contribuiu a Nação do Islã. Foi através das crenças do líder do movimento, Elijah Muhammad, que Ali realizou seu desejo mais profundo: rebelar-se. Seu pai o havia criado com histórias sobre a crueldade do homem branco e agora ele tinha uma maneira de revidar. Os brancos que ficassem com sua segregação, pois Elijah defendia a criação de um país negro, com leis negras. Daí a recusa em lutar contra os vietcongues, decisão que custou a Ali uma condenação de cinco anos de reclusão (revertida pela Suprema Corte antes que o boxeador tivesse começado a cumprir a pena) e três anos de sua carreira.
A índole desafiadora, segundo Eig, era a principal característica de Ali, e também sua falha trágica. O livro faz uso abundante de estatísticas, análise do discurso e uma infinidade de entrevistas para ilustrar a deterioração física e mental de Ali após os 35 anos, assim como a teimosia com que o boxeador negava isso. No fim, aquele que “voava como uma borboleta e ferroava como uma abelha” tinha se tornado “um saco de pancadas ambulante”. Ali foi atingido por 200 mil golpes ao longo da carreira, tendo recebido oito vezes mais socos do que aplicou no adversário em sua última luta por um título. É pena que essa biografia magistral reserve apenas 30 páginas para as três últimas décadas da vida do boxeador, quando ele lutou contra a doença de Parkinson e, com a idade, moderou sua revolta, chegando mesmo a representar os EUA em negociações com o Irã e o Iraque. De qualquer forma, Eig consegue abrir a guarda de Ali e penetrar o íntimo de um herói americano que acreditava na liberdade individual mais do que na lealdade a uma bandeira — alguém que, em suas próprias palavras, “queria ser livre”. /Tradução de Alexandre Hubner. Fonte: O Estado de S.Paulo.
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